Esta semana, temos uma reportagem do Correio Brasiliense sobre a evolução do ser humano e o amor. Vamos dar uma olhada.
• CORREIOBRAZILIENSE • Brasília, domingo, 28 de junho de 2015
» ISABELA DE OLIVEIRA
A evolução do amor
Pesquisadora americana argumenta que o sentimento é resultado da seleção natural,uma estratégia desenvolvida ao longo de milhões de anos que ajuda a espécie humana a cuidar da prole e garantir a continuidade da vida. Especialistas argumentam que é impossível explicar a afetividade de maneira tão simples
Trovadores do século 12, teólogos, poetas, cientistas...Não é pequena a lista dos que tentaram, em
vão, dar a resposta definitiva à pergunta “o que é o amor?”.Mas, ainda que pareça inalcançável, a busca por uma explicação não cessa. Para uma corrente de pesquisadores, a compreensão desse sentimento está no passado muito, muito distante. Segundo esses cientistas, de romântico, o amor não
tem nada. Seria, na verdade, uma espécie de vício natural, desenvolvido ao longo da evolução e surgido para motivar os primeiros hominídeos a concentrar em energia em um único parceiro.
A estratégia monogâmica adotada por esses ancestrais se mostrou eficaz para proteger o casal e a prole, e a tendência ao enlace amoroso foi transmitida geneticamente de geração em geração, como resultado da seleção natural, até os dias de hoje. O sentimento de forte apego é uma estratégia de sobrevivência humana, que une duas pessoas e as torna, assim, mais capazes de garantir a continuidade da espécie.
Helen Fischer, professora de antropologia e pesquisadora do comportamento humano na Rutgers University, nos Estados Unidos, é uma das figuras mais expressivas dessa corrente. Em um artigo publicado recentemente na revista especializada Behavioral Addictions, ela argumenta que, em sua longa história, o cérebro humano desenvolveu três sistemas, espécies de impulsos, que motivam a união e a reprodução: desejo sexual/libido, atração ou amor romântico e sentimentos de longo prazo voltados a um parceiro.
O“amor romântico”, como ela denomina, poderia ter início a partir de qualquer um desses componentes. Algumas pessoas começam pelo interesse sexual e, depois, se apaixonam. Outras
são arrebatadas pelo sentimento antes, mesmo sem se envolverem fisicamente.
E existem aquelas que, inicialmente, mantêm um relacionamento profundo de amizade e demoram meses ou anos para se darem conta de que a cara metade está ao lado.
Savana Segundo pesquisas conduzidas por Fischer, tais sistemas podem ter se desenvolvido em qualquer momento da evolução dos hominídeos, mas é bem provável que tenham surgido por volta
de 4 milhões de anos atrás, quando os primeiros representantes das linhagens que dariam origem ao homem começaram a se diferenciar dos outros primatas.
Provavelmente, isso ocorreu quando ancestrais como o Ardipithecus ramidus e o Australopithicus afarensis passaram a habitar os campos abertos das savanas e ficaram mais expostos a ameaças (leia infografia acima).
A psicóloga Ana Lucia Braz, professora da Universidade Anhanguera de São Paulo, unidade Santo André, explica que o bipedalismo (deslocamento sobre dois membros apenas) e a verticalização
de postura foram essenciais para o desenvolvimento do amor. Ao ficarem em pé, mãos foram liberadas da locomoção, assim como o maxilar da tarefa de segurar coisas. A mudança de postura alterou a forma como machos e fêmeas se relacionavam. Induziu, por exemplo, à copulação frontal, isto é, casais mantendo relacionamentos sexuais face a face.
Essa postura, no entanto, é um indicativo de fragilidade, visto que áreas vitais, como tórax, pescoço e coração, ficaram desprotegidas, tornando o sexo muito mais do que um meio de reprodução, mas também um ato de confiança. Braços livres permitiram que abraços, antes restritos a mães e filhotes,
fossem parte do coito. Houve a valorização dos rostos, que se tornaram únicos. Olhos e boca tornam-se elementos eróticos, pois, frente a frente, os ancestrais humanos descobriram o beijo. Citando as pesquisas do antropólogo EdgarMorin, “de forma simbólica e arcaica, significava a ‘troca de almas’”,
diz Braz, autora do livro O significado e a importância do amor—Um estudo fenomenológico (Casa do Novo Autor).
Aprendizagem ao longo do processo, a atração e a relação sexual tornaram-se mais frequentes, não se limitando às épocas de cio. A professora pondera, entretanto, que, ainda que a capacidade de se unir
ao outro tenha bases biológicas, reações orgânicas, por si só, não promovem a afetividade humana. “Ela necessita de um processo de aprendizagem para colocá-la em ação. Portanto, é composta por aspectos biológicos, sociais e psíquicos”, acrescenta a especialista.“A natureza, sozinha, não controla o homem.” Braz, portanto, não limita o sentimento a uma estratégia biológica de reprodução.
O amor sexual, ela explica, é apenas um tipo de expressão desse sentimento, que envolve a existência
da vida em grupo, a socialização, o amor materno e fraternal, entre tantos outros. O fato de muitos casais modernos se unirem sem o objetivo de gerar filhos poderia colocar vírgulas nas teorias da motivação reprodutivas. Mas uma coisa não exclui a outra. “Ofato de não se desejar um filho não significa que não exista amor, pois pode ser uma escolha pessoal, histórica ou econômica”, analisa a especialista.
O paleoantropólogo André Strauss, do InstitutoMax Planck de Antropologia Evolutiva, na Alemanha, diz que, como qualquer outra hipótese, a de Helen Fischer tem pontos fortes e fracos. “ O problema
reside na escolha que ela fez de como abordar esse tema.Tenho certeza de que não foi algo intencional, mas usar o termo‘amor romântico’ ajuda a tornar suas pesquisas mais midiáticas, mas, ao
mesmo tempo, cria barreiras para uma discussão interdisciplinar”, pontua.
Cultura
A observação de Strauss é o sinal de que, por mais que a teoria de especialistas como Helen Fischer pareça fazer muito sentido, o amor—e qualquer sentimento e comportamento humanos—recusa explicações simples. O paleoantropólogo lembra que a história e a sociologia mostram como a ideia
de amor romântico, assim como o conceito de infância, é uma construção da sociedade ocidental burguesa. “As anedotas que Fischer usa para estender a ocorrência de ‘amor romântico’ para caçadores-coletores na África e bonobos não são evidências de nada além de uma transferência injustificável que desafiaria o mais competente dos psicanalistas.
Uma dose de antropologia cultural seria bem-vinda para ponderar essa narrativa”, critica o brasileiro.
Ele acrescenta, contudo, que nem todo o trabalho da pesquisadora norte americana é falho. Por exemplo, para ele, Fischer faz contribuições importantes ao defender o valor adaptativo da “monogamia seriada”—uma pessoa pode ser monogâmica em vários relacionamentos levados ao longo da vida, e não em apenas um único—e mostrar as bases neurológicas da atração,essas também compartilhadas, até certo ponto, por outros primatas. “Trabalhos que aprofundam nosso conhecimento de como essa arquitetura biológica funciona simplesmente qualificam aquilo que nós já conhecemos de um ponto de vista fenomenológico.
Ou seja, não é porque agora sabemos que ocitocina e feromônios estão envolvidos nos nossos comportamentos afetivos que eles deixam de ser os nossos comportamentos afetivos”, diz Strauss, frisando que indivíduos são repensáveis por suas decisões. Para ele, parece claro que a linhagem humana tenha passado gradualmente para um sistema de acasalamento monogâmico seriado ao longo dos milhões de anos de evolução humana. A evidência mais forte disso é a redução das diferenças entre machos e fêmeas, especialmente dos caninos.
“Entretanto, temos que tomar cuidado para não subordinar todas as demais modificações que caracterizam a evolução humana a esse aspecto. Dizer que viramos bípedes para que os homens
pudessem defender as mulheres é algo sem nenhum fundamento. Até porque o bipedalismo se estabelece há quase 7 milhões de anos”, aponta.